Há alguns dias, começamos a receber uma torrente de emails, nos comunicando a recém divulgação do projeto conjunto entre a grande montadora General Motors e a empresa fundada por Dean Kamen, a Segway. O joint-venture estava divulgando o projeto P.U.M.A., “personal urban mobility and acessibility” (“mobilidade e acessibilidade pessoais urbanas”). A contínua série de emails foi tal, que decidimos postar um comentário especial, e mais longo, a respeito do Pocket Car. Agradecemos a todos que nos enviaram as notícias e, em especial, a alguns – como Cleiton Capellossi – que garimpam a Web com maestria.
Ficamos extasiados: a GM, grande montadora à beira da falência, abertamente criticada por contribuir decisivamente para a aberrante ascensão dos SUVs como modelo de mobilidade urbana pessoal, “fez par” com a Segway, pequena empresa de inovação, e estavam lançando um conceito de mobilidade pessoal que muitos dos contatos e participantes do Pocket Car sugeriram como modelo (em especial, cito o projeto amplamente especulativo de Dinard da Mata, enviado para o Prêmio Design Quatro Rodas).
Bom, para quem vem acompanhando o Pocket Car, o projeto Puma tem tantas características similares que dá para pensar: “qual o futuro do projeto Pocket Car?, já que um veículo muito parecido já está disponível” – se não imediatamente, certamente no futuro próximo.
Mas, como a maioria já sabe, nossa questão não se resume ao veículo, mas estende-se para as possibilidades de melhoria do ambiente urbano a partir da adoção de uma alternativa de mobilidade pessoal radicalmente compacta.
Para procurar dois extremos, vamos falar dos pólos mais distantes do projeto Pocket Car: 1 – O imperativo tecnológico (físico, ergonômico, funcional, estrutural e mecânico) da configuração mínima para a mobilidade urbana pessoal, que denominamos “Pocket Car”; e 2 – A reconfiguração da cidade, tanto para viabilizar o uso de qualquer veículo compacto pessoal, como e principalmente para que ela torne-se mais adequada à escala do ser humano, denominado no jargão urbanístico pelo eufemismo “pedestre”.
Mas há, ainda, um terceiro aspecto crucial para nosso projeto: 3 – O desenvolvimento colaborativo e participativo, tanto dos veículos, quanto de soluções inovadoras para o ambiente urbano. Este aspecto escapa inteiramente a uma proposta como a do pool GM/Segway. Mais sobre isso abaixo.
Quanto à primeira questão (1), o PUMA é um veículo que está “além e aquém” do que é estritamente necessário para o transporte individual ou de “pares leves” (um adulto e uma criança, ou um casal de estatura mediana). Ele é mais sofisticado que o Pocket, pois mantém-se na posição vertical, não importando as variações de velocidade, frenagens bruscas, colisões, etc, o que é um pouco difícil de acreditar (no caso de frenagens bruscas, vide os diversos casos de quedas de Segway documentados na Web). Ele também está “além” porque, mantendo-se na posição vertical, não apenas resolve a questão ergonômica (do ponto de vista da relação corpórea e antropométrica) como também mantém o veículo visível, frente à manada de veículos de grande porte que predomina nas ruas (resolvendo a questão da ergonomia cognitiva); além disso, o PUMA ocuparia uma planta muito menor que o Pocket, pois não precisaria assumir a posição deitada, necessária para as altas velocidades no Pocket Car.
Mas o Puma está também “aquém”, e em questões que têm mais precedência. Um dos aspectos mais trabalhados no projeto Pocket Car é que o veículo deve prover segurança, com meios de proteção ao motorista e pedestre em caso de colisões, manter-se estável, mesmo em frenagens, acelerações bruscas e colisões (não “capotar”), e exigir o mínimo de energia para manter-se em uso (o PUMA, como o Segway, exige que o motor esteja em constante uso, para que se mantenha ereto). E, ainda mais crucial para a adoção generalizada de veículos dessa natureza, queremos que o Pocket seja fabricado por uma ampla variedade de empresas, e não apenas as que possam pagar os royalties ao pool GM/Segway. Mas também, ao falar-se de automação do veículo, deve-se ir além da integração de dispositivos de entretenimento e de evitar-se colisões: a tecnologia digital atual já permite que veículos como o Puma ou o Pocket Car fossem auto-conduzidos, assim como auto-localizados, liberando definitivamente o usuário do processo de condução e navegação urbana. Inovações simples, como o limite de velocidade compulsório, seriam banais. No entanto, com exceção do sistema anti-colisão e da integração de fone celular, a tecnologia digital que está presente no Puma tem por função manter o veículo em pé.
Uma tradição sobre a qual o Pocket vem embasando muito de sua problematização inicial é a do “Velomobile”, denominação utilizada para veículos de três rodas, carenagem e tração humana (pedal). Vemos ali o antepassado direto das características fundamentais do Pocket Car. Poderíamos simplificar, de maneira quase caricata, e dizer que o Pocket nada mais é que um “Velomobile motorizado”. Mas isso seria apenas uma parte muito pequena do projeto de um veículo viável no mundo urbano contemporâneo e futuro. Além da motorização (elétrica), é necessário viabilizar a entrada e saída simples de usuários portadores de necessidades especiais (na posição vertical do Pocket), assim como sua locomoção sem assistência (aspecto trabalhado parcialmente pelo PUMA); a comodidade e conveniência de uso devem ser comparáveis às de um automóvel tradicional, em especial, o quanto ele protege o usuário dos elementos; e, por fim, sistemas de segurança, como os “air-bags corpóreos” que viemos discutindo durante o workshop (que começam a popularizar-se no motociclismo), seriam meios de proteção ao usuário que também protegem o pedestre.
Mas, as características técnicas do Pocket Car seriam apenas metade da história. Mais importante para nós seriam os aspectos urbanos. O PUMA não é o primeiro veículo “extra-compacto” e de uso individual que conta com ampla divulgação e mídia. Ainda na década de 1980, o Sinclair C5, foi produzido em série e amplamente promovido pela mídia britânica. Mas, como outras opções de mobilidade pessoal antes dele, o C5 entrou para o rol das curiosidades históricas da indústria automobilística – a incompatibilidade entre os veículos pessoais compactos e a “manada de automóveis” é tal que qualquer usuário de automóveis vê-se como terrivelmente exposto, quase como um pedestre jogado no meio de uma avenida movimentada, ou em situação ainda pior, sendo menos visível. Para que opções como o C5, o Puma e o Pocket Car sejam efetivamente parte do ambiente urbano, como um meio eficaz e viável de mobilidade pessoal, mudanças drásticas devem ocorrer no que chamamos de “Ecologia de Transportes Urbanos”. Essas mudanças não visam apenas viabilizar essa mobilidade pessoal, mas também, e fundamentalmente, tornar o ambiente urbano mais adequado à sua peça mais importante: o ser humano.
Portanto, nossa maior preocupação é com o ambiente urbano. A proposta de um veículo mínimo de mobilidade pessoal é o meio que encontramos para questionar uma das características mais nocivas da cidade que herdamos do século XX. Essa é a cidade do automóvel de motor a explosão, 4 lugares e autonomia de 300-500 km. Outros meios de transporte mais eficazes e específicos, como o bonde de pequeno porte, o trem de longas e médias distâncias, dentre outros, foram sendo marginalizados em função de derivações do automóvel. Primeiro, veio o caminhão, efetivamente um automóvel de grandes proporções, dedicado ao transporte de cargas. Posteriormente, uma adaptação do caminhão veio substituir a ampla e sadia variedade de veículos de mobilidade coletiva – o trem, o bonde a cavalo, o bonde elétrico. A adoção generalizada dos veículos propulsionados por motores a combustão interna marginalizou meios mais adequados, os quais compunham uma “Ecologia de Transportes Urbanos” mais sofisticada, flexível e econômica, e portanto, mais sustentável.
Essa Ecologia de Transportes Urbanos dominada pelo motor a explosão é nociva ao ser humano não apenas pelas suas características mais óbvias – a poluição atmosférica, o aquecimento global – mas também por aquelas às quais estamos habituados, até mesmo por acreditar que não há opção: a poluição sonora, a ampla e inquestionável agressividade e violência do espaço público, a segregação entre espaço de circulação e espaço de vivência e coletividade. A rua é espaço do automóvel, da circulação, do movimento, e não da vida, da comunidade, das trocas sociais, do convívio e da diferença. Para citar apenas uma das características que foram abandonadas em função dessa ecologia empobrecida dos automóveis, a transposição da vasta maioria do transporte público para pneus pareceu uma grande simplificação, exigindo condições menos acabadas da pista; no entanto, em troca dos trilhos, ganhamos um enorme sistema de suspensão, que obriga diariamente hordas de cidadãos escalarem 1,2m para transpor os pneus e transmissão. Ou seja, o que pareceu, de início, uma troca sensata, tornou-se uma agressão e degradação cotidiana.
Vivemos em uma cidade composta por dutos de circulação. Dutos principalmente ocupados por veículos que deslizariam em alta velocidade, conduzidos por ocupantes que não travariam qualquer relação com seu entorno, cidadãos alienados de seus semelhantes. A falência desse modelo, com o alastramento dos congestionamentos-monstro, é palpável e inegável. Mas, mesmo assim, a promessa de velocidade, comodidade, liberdade e independência que é o automóvel mantém seu jugo sobre a imaginação da maioria dos cidadãos.
Promover um meio de mobilidade pessoal, conveniente, barata e segura (para o motorista e para o pedestre), significa promover uma cidade que seja mais amigável, mais adequada à vida coletiva, à diversidade, à valorização do espaço público, à sociedade, à cultura.
Longe de ser uma solução geral, o Pocket Car seria um modo renovado de problematizar a locomoção de pessoas e cargas pela cidade. Ele indica que é possível que opções de mínimo impacto sobre o ambiente sejam adotadas. Ele ainda critica a noção arraigada de que não existem opções pois, se essas houvessem, já teriam sido adotadas. Ele indica que pode-se partir de um repertório tecnológico amplamente conhecido e utilizado – o dos veículos a tração humana (HPVs, bicicletas, velomobiles) – para que se concebam alternativas de transporte. A adoção de tais alternativas contribuiria decisivamente para mudar profundamente a qualidade das cidades, favorecendo a escala do ser humano, suas velocidades, forças, tolerância a ruído, contato e impactos.
Ele indica ainda a possibilidade de maiores e mais variadas integrações entre as diversas modalidades de transportes, desde o transporte coletivo de grandes distâncias, até o transporte individual localizado de pequenas distâncias. Sendo que essas “últimas milhas” (também mote do projeto Puma) podem ser trafegadas em veículos cujos usuários não sejam seus donos: outras modalidades de propriedade de veículos de uso pessoal, aproximando-os da noção de infra-estrutura urbana. (A exemplo da popularização de sistemas de “Car-Sharing” e “bicicletas livres” na Europa.)
Imagine uma cidade em que as ruas não fossem barulhentas. Em que o espaço público fosse um entrecruzado de parques lineares, verdejantes, entrecortados por cafés, restaurantes, lojas, feiras, praças e anfiteatros. Em que o pedestre pudesse circular livre de preocupações. Em que os veículos motorizados se deslocariam em velocidades controladas, percebendo a presença dos pedestres. Do ponto de vista tecnológico, essa possibilidade é concreta. Já, do ponto de vista cultural… essa possibilidade ainda é de difícil aceitação, sendo que a própria imaginação está sob o domínio de modelos ultrapassados.
Esse é o principal esforço do projeto Pocket Car: tornar palpável essa possibilidade, divulgar amplamente as questões inerentes a ela, promover e popularizar este debate.
Neste sentido, apenas podemos receber um projeto como o Puma com grande satisfação, pois significa uma decisiva contribuição para a popularização necessária ao debate em questão. O Puma indica definitivamente que a questão da mobilidade pessoal atingiu uma encruzilhada (sem ironias…): ou percebe-se que os deslocamentos diários de certas parcelas da população podem e devem ocorrer em meios de transportes realmente proporcionais à escala humana, ou a mobilidade pessoal vai continuar sendo uma das principais vilãs da péssima qualidade de vida que consideramos inevitável nas grandes cidades.
Como dizem: esta questão é parte de nosso Zeitgeist, o “espírito da época”. Quando você vê algumas pessoas falando de um mesmo assunto, pode ser coincidência. Quando vêm muitas pessoas, pode ser uma moda. Quando a grande mídia, os acadêmicos, a sociedade, a economia, etc, estão envolvidos com a mesma questão, uma mudança deve estar prestes a acontecer.
Quem tiver interesse em obter mais informações ou participar do projeto Pocket Car, entre em contato:contato@pocketcar.org, e visite nosso portal: pocketcar.org
(Todas Imagens © Caio Vassão e Marcus Del Mastro – Imagens da Bicicleta de Carga Mike Burrows, do protótipo do projeto PUMA, GM/Segway, e do Triciclo Windcheetah foram realizadas por Caio Vassão e Marcus Del Mastro a partir de imagens disponíveis na Web.)
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