Acabei de ver o documentário “Dangerous Days”, a respeito da produção do filme “Blade Runner”, de Ridley Scott.

O que marca no documentário é a complexidade de uma produção dessa natureza. Especialmente naquela época – início da década de 1980. Todos os “efeitos”, como se falava, foram realizados em película, modelos, câmeras controladas por computador, etc. Toda a parafernália típica da era pré-computação gráfica. Fui fissurado nessa tecnologia, e lembro de horas de discussão com Tomás Duque Estrada, amigo de infância, a respeito das técnicas. Tomás seguiu esse rumo, fundando a Lobo e depois incursando pela Vetor Zero. Eu migrei para a Arquitetura, Design e projeto, deixando de lado o universo onírico das narrativas, animação, cinema e vídeo. Mas nasci e cresci no meio dessa comunidade.

Mas, o que ainda me impressiona, e vejo como a imensa contribuição do documentário, é a descrição da criação de uma peça que conheço de trás-pra-frente: cada cena, tomada, a narrativa (também me embrenhei no universo Philip K. Dick), os temas, etc. De onde tudo aquilo saiu? Como aquelas imagens foram geradas?

Pela minha formação conheço as principais referências, que também tornaram-se minhas: Syd Mead (“Visual Futurist”, diretor de arte de incontáveis produções da época, de Star Trek, passando por Tron, 2010, entre outros), Frank Lloyd Wright (apartamento de Deckard), Moebius e Bilal (todo o clima, imagética, temas visuais), etc. É possível que Syd Mead seja um dos maiores responsáveis pela imagem e composição do mundo industrial em que vivemos hoje. Mas isso requer outro post…

Mas a imensidão da produção, os becos-sem-saída, as lutas de bastidores pelo controle da produção, os falsos acertos, as contribuições “ad lib” (“… All those memories will be lost, like tears in the rain.”, de Rutger Hauer, improvisada na primeira leitura do roteiro.), a qualidade como conseqüência da perseverança.

Isso me lembra um livro que li quando ainda estava na faculdade: “The Complete Beatles Sessions”, a respeito, como o nome mesmo diz, das sessões de estúdio das gravações dos Beatles.

Comprei o livro por uma bagatela – lembro até hoje: 20 reais, na aurora do magnânimo “Plano Real” (1994). Ele estava largado em uma das prateleiras de uma livraria do Centro. Quem iria comprar algo com um tema tão técnico, e tão pouco glamouroso? Pois, fissurado em livros, e curioso com o que poderia estar escondido em um tomo como aquele, comprei o troço…

Valeu cada centavo.

O que se descreve ali é a trajetória de gravações de músicas como Strawberry Fields Forever, do álbum Seargent Peppers Lonely Hearts Club Band, o Álbum Branco, Hey Jude, etc. Na verdade, o livro acompanha todas as sessões, todos os dias, tudo o que foi gravado pelos Beatles, de 1962 a 1970. Pode parecer coisa de fanático – admito – mas é muito instrutivo. Lendas, quanto à improvisação total, e facilidade sobre-humana, são colocadas por terra: tudo o que foi feito é conseqüência de muito esforço, insistência, “cara-de-pau” em admitir incompetências e pedir ajuda (em geral ao produtor erudito George Martin). Fica claro que a genialidade dos 4 fabulosos foi decorrência da disponibilidade que tiveram para a descoberta constante de novas avenidas de expressão e não de “mentes ungidas pela graça divina”…

Somando o que se lê em “Beatles Sessions”, ao que está em “Beatles Complete Scores” (partituras completas, instrumento por instrumento, “tiradas” por um grupo japonês), pode-se perceber as imensas limitações com que a banda se deparou: boa parte das harmonias complexas, mais sofisticadas, dos últimos discos se deve à sobreposição de dois ou mais acordes em instrumentos diferentes, e não a um conhecimento de harmonia e contraponto mais elaborado, sequer à capacidade de “tirar” tais harmonias das influências eruditas que o grupo dizia ter na época. Músicas como “Sexy Sadie”, que parecem jazz ou bossa nova, em termos de harmonia e construção melódica, são, na verdade, sobreposições de acordes e a tentativa de manter-se em uma mesma grade harmônica; feita um pouco “às cegas” por Lennon, MacCartney e Harrison… Abordagem “hands on” que gerou um frescor nas gravações que certamente alcançou a platéia, mas passou completamente despercebida ao público erudito (e ainda passa): desde minha infância, meu irmão mais velho, Tiago, tem um livro, “Beatles Compleat”, compilação das harmonias simplificadas das músicas. Os escritores “tiraram” as canções com o ouvido de um músico de jazz ou erudito tradicional, tentando encontrar as grades harmônicas conhecidas, e não conseguiram compreender a abordagem de harmonias sobrepostas… Tudo soa como uma versão de “piano bar”, e não as estranhas e interessantes composições das canções como gravadas.

Uma coisa se tira dessas peças de análise de produtos da indústria cultural: nada sai do nada!! Tudo é fruto de tentativa e erro, de pesquisa, formal ou não, de envolvimento direto com a matéria em questão.

Quer inovar? Tente, e tente de novo, e de novo – até encontrar algo com que possa trabalhar. Construa um campo de referências, sendo elas suas próprias (suas próprias criações que se tornam referências posteriores), como dos outros (livros, filmes, produtos, idéias, conceitos, um certo modo de “falar”, “ouvir”, “criticar”…). Boa parte das inovações de Scott (Blade Runner) ou dos Beatles se deve à completa ignorância do que poderia ou não ser feito, de acordo com os cânones da indústria.

Isso me lembra de Modest Mussorgksy, muito criticado e mesmo ridicularizado pelos colegas russos: obras como “Quadros em uma Exposição”, ou “Noite no Monte Calvo”, ou ainda “Boris Godunov”, foram criticadas por não se conformarem aos preceitos da harmonia e composição como estabelecidos em fins do século XIX. É só comparar a orquestração de Rimsky Korsakov para “Noite no Monte Calvo”, e a orquestração de Ravel (já aberto às referências da música balinesa, jazz, e atonalismo) para “Quadros em um Exposição”, que fica claro o estrago que o establishment pode fazer a um conceito ainda nebuloso, em formação. Como é delicada a intenção honesta!: uma palavra dogmática, e pode-se por a perder a inovação, a vida que começa a surgir.

Outra lição: seja cabeça-dura. Não que se deva manter-se preso a um conceito estúpido, sem importa-se com o que digam. Mas é importante saber ater-se ao que te impeliu à criação: se Ridley Scott não fosse o cara arrogante e egomaníaco que é, ele teria cedido às pressões dos engravatados da Warner Bros. e teria destruído a visão que laboriosamente construiu com a ajuda de Mead, o departamento de arte do filme, Vangelis, Moebius, Bilal, etc. Os produtores e financiadores do filme preferiam retomar a visão “futurista” de um “Logan’s Run” do que arriscar-se por um set de filmagens caótico, inteiramente alheios às técnicas ainda em formação.

Dangerous Days

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