desdobramentos

O projeto tem uma vida completamente diferente da imagem. Ele não é simplesmente uma imagem, uma figuração, uma detecção ou uma predição de uma realidade. Mesmo que ele se reporte a uma realidade ulterior, seja uma referência de uma realidade a ser feita, ele acaba por ser uma realidade própria, um repositório de intenções, sempre dinâmico e rico de significados.

Essa noção de projeto é Arte. Mas não a arte de galeria, a arte enquanto fruição estética controlada em ambientes controlados – aquela arte resultante da Fratura Romântico-Positivista. É a grande Arte da produção do mundo, da criação de artefatos, da positivação de entidades que nunca poderiam ser delimitadas por disciplinas científicas, filosóficas ou profissionais. A Arte enquanto uma realidade própria, dotada de carga estética, funcional, tecnológica, cultural, corpórea, crítica – em suma, Viva.

Este projeto-entendido-como-Arte é uma entidade complexa, irredutível, sempre em mutação. Falamos de “meta-objetos”, ou ainda em “meta-espaços” – o projeto é isso, e muito mais.

A noção ainda praticada de projeto nos meios profissionais derivados das artes aplicadas e da arquitetura é uma noção pífia, minúscula, de projeto: projeto enquanto determinação de uma realidade em potencial. A noção de projeto, própria da “Cultura de Projeto”, é um projeto enquanto virtualidade, que se faz sempre enquanto atualidade – sempre enquanto devir, enquanto fluxo de impulsos e sua coagulação provisória em entidades de referência.

A construção do futuro da humanidade depende da “Cultura de Projeto”. Hoje vemos a conseqüência de delegar-se a criação do ambiente construído ao pensamento instrumental: sabe-se disso há pelo menos oitenta anos, mas ainda patina-se nesta dúvida. O projeto de engenharia, enquanto exclusiva determinação de localização de massa e energia para a compleição da “máquina urbana”, é um excretor de construções/destruições, e pouco mais. A justificativa da construção do conforto é apenas uma pátina funcional, que sustenta a construção da “prisão urbana” em que nossas cidades de converteram: mais confortável para ser mais tolerável. Mas isso não precisa ser assim. O projeto pode ser mais que isso, e a engenharia é parte de um tecido social mais amplo.

A “Cultura de Projeto” encara a construção do ambiente como uma tarefa grandiosa e responsável – e sabe que ela só pode ser enfrentada com humildade: toda e qualquer proposta é sabida enquanto provisória, temporária, uma tentativa de construção de mundo; portanto, deve-se ser leve, sensível, coerente. Tais demandas em muito suplantam a competência cognitiva, a construção estritamente ou exclusivamente racional e consciente da realidade. A “Cultura de Projeto” encara essas tarefas com a amplidão da psique, e não com certidão ingênua e estreita da ciência normativa enquanto instrumentalização do mundo.

Assim sendo, a “Cultura de Projeto” não pode ser avaliada pelas outras áreas do pensamento, como a filosofia, as ciências, a legislação. Pelo contrário, o Projeto é um campo de choques e construções que de tudo toma, e para tudo dá. Isso é óbvio para qualquer um que encare os fatos da vida urbana, atual ou histórica: construir o mundo nunca foi e nunca será tarefa para a mente exclusivamente racional e/ou estritamente mecanicista, sempre seremos “driblados” pelo mundo, sempre estaremos aquém da complexidade inerente à realidade, sempre seremos uma sombra da vida possível, da grande vida prazerosa e dolorosa da profundidade do ser – sempre que acharmos que “projetar” é simplesmente planejar, que é apenas dispor da maneira mais aprazível, ou ainda que é apenas maximizar materiais, energia, ganhos. O mundo é tudo isso – mas é, ainda, muito mais!

O Projeto é um Nexo, uma realidade própria que extrai e reporta-se a outras realidades paralelas, transversais, oblíquas, reflexas e diversas. Antes de mais nada: o espaço – a construção do espaço. O espaço edificado nada mais é que um dos casos de espaços projetáveis. Os meta-espaços da política, da jurisdição, dos territórios, das disputas e colaborações, são também espaços de projeto: feitos como projeto, e também onde ocorrem projetos.

Se podemos resumir a “humanidade” diríamos: “Homo Telos”. A teleologia, a capacidade de ver à distância, reconhecer entidades reais, imaginadas e propostas. O projeto enquanto “lance”, lançamento, o projétil. Mirar e acertar. Capacidade inata. Será muito reconhecer ali nossa substância? O que meramente “acontece”, sem a interferência do projeto, da “previsão ativa do futuro”, é muito pouca coisa. Milhares, milhões de projetos compõem a vida mais banal – o que dizer da vida mais realizada, mais satisfeita: ainda mais projetos? Realizados ou não. Até os irrealizados direcionam a vida: mudam o modo como vemos as coisas, as possibilidades. E ainda, a indeterminação, ou “indetermininabilidade”, da vida concreta é um campo de imbricamento de projetos. Mesmo a práxis, não poiética, é um campo de micro-projetos. É como na fenomenologia: ver já é construir. E essa é uma noção ampla e difusa de projeto – não estamos falando do projeto instrumental, estritamente determinista: a previsão do futuro enquanto aferrar a realidade a um desejo unitário e simplista; mas sim de um projeto que abraça a complexidade e a multiplicidade, sendo assim um processo aberto.

Portanto, qual a importância do Projeto? Me parece que enorme. Mas pouco se faz à altura dessa importância: parece ser hobby de boa parte dos projetistas (arquitetos, engenheiros, designers) diminuir essa dimensão do projeto. Incorporar elementos de disciplinas pequenas e mesquinhas como se fosse a última chance de validar-se perante uma ditadura da ciência normativa – a qual se coloca cada vez mais como uma nova religião. A competência inata do “lançar”, projetar, é colocada como incógnita – como realmente o é – e com o medo do desconhecido, tenta-se contorná-la, sem assumir sua dimensão completa, sempre tentando-se colocá-la em segundo plano, em relação à primazia de uma ciência régia que torna nossa vida cada vez menos válida.

Hoje, a “Cultura de Projeto” é vista pelo establishment acadêmico como “ciências sociais aplicadas”. Uma denominação que encerra todo o medo da potência que é inerente ao projeto. Escondida nos recônditos dos labirintos burocráticos da academia redutora do mundo a bônus profissional do pesquisador padrão, o projeto se reduz a uma tentativa frustrada de ser uma ciência menor – um derivado menor de uma ciência menor (e assim são consideradas as ciências sociais, atualmente). Que pequenez, que mesquinhez!: a vida que todos vivemos é produto do projeto – casas, roupas, veículos, utensílios, mobiliário, dispositivos computacionais, urbanidade, paisagem,… Mesmo assim, o “Projeto” é uma área menosprezada pela inteligentsia que legisla sobre o que pode ou não ser sabido, categoricamente.

Sendo assim, devemos dedicar atenção ao modo como o Projeto é considerado pelas instituições de ensino ou pesquisa! Pois, serão ali que as gerações futuras aprenderão o que é “projeto”. Ou então, se manterão sempre à margem de um oceano de realidades potenciais, sempre repetindo uma coreografia de projetos conhecidos e “meta-espaços” recalcados, um eco infinito das dimensões menores de uma atividade que define nossa própria existência.

Cultura de Projeto

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