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Sei que corro o risco de estar fazendo uma simplificação um pouco exagerada, mas acho que a questão quanto à calamidade que vemos nas cidades do sudeste nessa época de início de ano (todo ano…) se deve a termos construído nossas cidades em moldes adequados a climas temperados… Como diria o índio, ao ver o homem branco construindo à beira do rio: “Aí, não! Alaga!”; ao que o português respondia: “Imagine, o rio está lá longe! Quando que um riozinho como esse vai alagar até aqui?”, “Todo ano, cara-pálida, todo ano…!”

Pois é, construímos nossas avenidas nos fundos de vale, “disciplinando” os rios, enclausurando-os em canais e tubulações. As abundantes várzeas do Rio Tietê e do Rio Pinheiros foram ocupadas por loteamentos da Empresa City, fundada para tirar proveito da canalização do Pinheiros. Fiquei estupefato ao ler a tese de doutorado da Odette Seabra, “Os Meandros dos rios nos meandros do poder”, quando participei do concurso de idéias para as Marginais (em 1998, do qual saiu o “Projeto Pomar”). Seabra denuncia como a política paulistana foi manipulada para que a várzea do Pinheiros fosse transformada na região mais valorizada da cidade. Para tanto, um complexo sistema de represas foi construído, acima a abaixo da cidade, para controlar, “disciplinar”, a vazão do rio.

Em paralelo à ocupação dos Jardins, a cidade cresceu, e de maneira desordenada, com a construção de um sistema de águas pluviais “amnésico”: o que se diz, a boca miúda, é que não se conhece muito bem o que há no subsolo de São Paulo, que os dutos estão todos vazando, entupidos ou conectados aos esgotos, e vice-versa. Além disso, temos uma cidade impermeabilizada, que acelera o fluxo das águas para os dutos mais baixos, sem absorção pelo subsolo, o que aplacaria a fúria das chuvas, e diminuiria a freqüência e intensidade das enchentes…

As práticas urbanas aplicadas a SP, RJ e muitas outras cidades de pequeno, médio e grande porte da região Sudeste, não seriam muito problemáticas caso aplicadas a países de clima temperado. Mas, aqui, em regiões que têm chuvas “episódicas” (aquelas que ocorrem “muito de vez em quando”) a cada início de ano – que assombravam os europeus de passagem pelos trópicos (famosa história de Darwin que, observando uma enxurrada em curta estadia em SP, intuiu a “pujante força da natureza”…) – não faz nenhum sentido contar com o traçado constante de um rio. Em especial, rios de planície como Tietê e Pinheiros que, a cada ano, mudavam de traçado, após o alagamento total de suas várzeas. Isso sem falar do tremendo desperdício que é coletar, sujar e descartar a água da chuva que cai nos telhados, lavam as ruas, e são jogados no mesmo canal em que circulam os esgotos da cidade… Brilhante!

Para quem lembra, a “disciplinarização” do Rio Pinheiros e do Rio Tietê era relativamente bem sucedida até fins da década de 1980, com pouquíssimos eventos desastrosos de enchentes (a primeira enchente que presenciei em SP foi em 1989…). A força das águas, somada ao descaso público com a infra-estrutura fluvial, e ainda à insistência de aplicar práticas temperadas em clima tropical (impermeabilização, canalização, tubulação, áreas secas, etc.) acabou por falir completamente naquela época. Lembro das enchentes, cada vez piores, ao longo da década de 1990, quando o tema virou “assunto de palanque eleitoral”.

A revista Veja pergunta: “até quando?”. Ora, eu responderia: “até que acordemos para nossa realidade tropical, e passemos a construir, e re-constuir, cidades que sejam realmente tropicais, e não cidades temperadas em clima tropical…”

Me parece algo particularmente brasileiro: a tremenda dificuldade de criar práticas autóctones. A exemplo da “roupa formal”: na Austrália, é muito comum, e amplamente aceito, que o paletó seja acompanhado pela bermuda, as calças curtas – afinal, o clima é quente mesmo! Aqui, como sofrem os engravatados da Av. Paulista!, cobertos da gola aos pés: só com muito ar-condicionado mesmo! E ai de quem aparecer de bermuda em um “ambiente formal”: corre o risco de ser barrado ou expulso!

Há alguns anos, participava de uma pesquisa de grande escala sobre edifícios inteligentes, automação predial e áreas urbanas inteligentes (o que hoje chamam de “smart cities”). Surgiu uma discussão sobre o impacto ecológico do ar-condicionado. E, para espanto dos europeus presentes, os brasileiros disseram, em coro, que não podiam viver sem ar-condicionado, e que “o futuro seria esfriado a ar-condicionado: da casa, ao escritório, passando pelo automóvel, tudo terá ar-condicionado no futuro”. Discordando de meus conterrâneos, disse que o uso do ar-condicionado era um fator cultural, e que não haveria nenhum motivo para usarmos tanto ar-condicionado em um clima tão favorável como o nosso (afinal, os europeus se espantaram porque, para eles, o ar-condicionado é, principalmente, uma amenidade crucial no inverno, e não no verão – e nós, brasileiros, vivíamos em um “eterno verão”!). E, como exemplo, eu disse que o carro convencional só é uma “estufa ambulante” porque foi criado na Europa – se a indústria automobilística tivesse sido uma invenção indiana, nós andaríamos com carros ventilados naturalmente, e muito melhor protegidos do sol. Sob risadas gerais, fui ridicularizado pelos meus conterrâneos mais “experientes” (na época não se falava de “Tata Motors” ou de “Pocket Car”).

No intervalo, fui procurado por alguns dos europeus presentes, que ficaram muito curiosos com possíveis idéias sobre “ventilação natural automatizada”, enquanto os brasileiros descartaram definitivamente aquele “jovem e inexperiente pesquisador”…

Me parece que a mensagem desse “causo” é clara: a mentalidade brasileira tem uma tremenda dificuldade de se assumir como propositora de idéias originais, enquanto os europeus, e também americanos, japoneses, etc, aceitam inovações “estranhas” com muito mais facilidade – afinal, sabem que o “novo” é, na maioria das vezes, muito “estranho”. Até hoje, fomos condenados a viver em “cidades temperadas em clima tropical” porque o brasileiro fica esperando as inovações chegarem, repetindo o mantra do colonizado: “… ‘isso’ ainda não chegou no Brasil!” (o “isso” é qualquer inovação vista nas grandes feiras tecnológicas ou publicações especializadas internacionais); como se todos os países fossem vagões que andam no mesmo trem, estando uns mais a frente (os “países avançados”) e outros mais atrás (os “países em desenvolvimento”). Ainda hoje, temos muita dificuldade de propor idéias “brasileias”, “paulistas” ou “bahianas”, etc., fora aquilo que é inexorável ou ancestral, como a culinária, a música e a língua, que estariam aí antes dos desenfreio do desenvolvimento acelerado do fim de milênio.

O mesmo grupo de europeus me disse na época que “o Brasil não é um ‘país emergente’, ele já emergiu!”

Isso continua valendo hoje, e ainda mais, dadas as ululantes melhorias sócio-econômicas dos últimos anos.

Será que aprenderemos com as tragédias do Rio, de SP, Santa Catarina e Paraná, que podemos pensar cidades tropicais com autonomia? Que não precisamos mais seguir os cânones idiossincráticos das cidades europeias? Que a água é uma riqueza que, esquecida, pode virar um monstro destruidor?

São tantos os casos de calamidades causadas por esse “descaso com a água”, desde a desestabilização da Ponte dos Remédios até o assoreamento crônico da Bacia do Tietê que chega a ser constrangedor que não se saiba que a causa disso é uma dissonância cultural: vivemos em um clima tropical e aplicamos técnicas e práticas de extração de climas temperados.

Desconfio que uma “Cidade Tropical” seja uma entidade fundamentalmente diferente de uma “Cidade Temperada”.

Creio que a amplidão que tanto carecemos por aqui seria uma das características dessa cidade tropical. Quem sabe uma cidade de palafitas não seria mais adequada que uma cidade de alvenaria, que se alaga todo ano? Um amigo me disse que “a várzea é um espaço de fluxos, por que não colocar ali as vias de alta velocidade?”, que é a prática que criou as Vias Marginais em SP, e tantas outras vias similares no Brasil e no mundo (a princípio, em clima temperado…). Mas, não seria necessário que fossem vias suspensas, que permitissem a movimentação natural e sazonal de solo superficial, que é característica dos rios de várzea?

Bom, creio que outro post seria necessário para descrever as possíveis características dessa “Cidade Tropical”…

Rio de Janeiro – Cidades Temperadas em Clima Tropical

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