Me mandaram um link de um tutorial, feito na Alemanha, sobre tipografia tradicional: fontes móveis, imprensa manual, solventes petroquímicos, intenso trabalho preciso, concentrado e desgastante. É um vídeo muito bem realizado.
Além de obviamente achar interessante todo o processo ali descrito — a expressão gráfica palpável, tridimensional (tinta tem espessura e profundidade), cada impressão é um objeto único, etc. — o tutorial me incomodou. Inicialmente, não consegui determinar porque. À medida que o vídeo progride, chega a hora da vasta utilização de solventes químicos para a remoção da tinta que sobrou, tanto na matriz como nas entranhas da máquina utilizada.
A técnica de impressão manual surgiu e foi desenvolvida em uma época em que a maioria da população do planeta não sabia ler, sequer teria acesso a bens industriais (lembrando que, afinal de contas, a imprensa foi a primeira indústria).[1. Segundo o conhecimento estabelecido, a primeira indústria foi a têxtil. No entanto, Mcluhan nos lembra que a primeira indústria não surgiu com o taylorismo, mas sim o precede em 300 anos: Gutenberg foi o primeiro industrial, racionalizando o processo de produção de livros, inventando conceitos como “série”, “previsão de custos”, “operário”, dentre outras.] O uso abusivo de solventes químicos tóxicos era visto como “um problema menor” em prol de um “fim maior”: o que poderia ser um “pouquinho de poluição” para que pessoas pudessem ter acesso a informação? (Bom, sequer falava-se de poluição durante os primeiros 400 anos da imprensa…) À medida que a indústria gráfica se expandiu, e converteu-se em commodity, com parques gráficos de grande escala posicionados em diversos grandes pólos populacionais, o processo de impressão se “efemerizou” crescentemente: desde a redução drástica, ou eliminação, de solventes para fins “one-off” (testes são feitos na tela do computador), até o abandono de solventes químicos tóxicos, em prol do solvente “água”, o que envolveu a mudança da própria natureza do maquinário gráfico. É claro que isso não impede que associações de impressão manual e um verdadeiro mercado paralelo dedicado à tecnologia de impressão manual tradicional (e mais recente, durante o início do século XX e o início da década de 1980) tenham surgido e se desenvolvido, tanto como reação à banalização da informática, e também como intenção de legar conhecimento a gerações futuras.
A demonstração pública de como realizar um cartaz em um sistema obsoleto pode ser muito interessante, consequente, histórico-consciente até mesmo demonstração de pensamento crítico (que não matraqueia o status-quo digitalizado, mas procura opções e lembra as práticas legadas dos ancestrais). Mas é bom lembrar que trata-se de um “tutorial”, e não apenas o registro videográfico com fins educacionais, experimentais ou para a posteridade. Ou seja, a proposta é que outras pessoas aprendam e reproduzam o processo.
É notável que há um verdadeiro movimento de criação artesanal de livros (exemplos de comunidades: 1, 2 e 3), contando com guias online e vasta produção.
Note que não uso o termo “obsoleto” de modo leviano, como quem diz que o seu computador perfeitamente operacional “está obsoleto” porque outro mais avançado foi lançado no mercado. E não me oponho a que estudantes, acadêmicos, designers e/ou artistas experimentem e produzam com técnicas obsoletas. Na verdade, tenho uma opinião muito favorável da retomada de práticas manuais, artesanais e mais ‘corpóreas‘. Sempre que posso, estimulo alunos e colegas a ‘pensarem fora da caixa’ (a ‘caixa’, neste caso, é o computador…). E tenho discutido muito a nova ‘ecologia de publicações’, que envolve um complexo ecossistema, desde a publicação artesanal até o livro digital, passando por integrações entre Web e as múltiplas manifestações da publicação. Sempre insisto que o livro é um “objeto”, dotado de materialidade rica, que deve ser sempre explorada — certamente um caminho muito legal é pelos meios tradicionais.
A questão é outra…
O video-tutorial que me suscita a escrever aqui é uma demonstração muitíssimo competente de uma técnica muito interessante, apresentada de modo didático, aberto e generoso.
Por um lado, a impressão gráfica tradicional está “obsoleta” porque ela nunca daria conta da vasta massa de impressões demandadas atualmente de modo sustentável e, por outro lado, torna-se um processo de extremo luxo, em um mundo que cada vez mais procura no suporte “computador” um meio menos ecologicamente agressivo do que o suporte “papel”. Ou seja, na melhor das hipóteses, o tutorial é ingênuo e trata de uma curiosidade pertinente apenas no meio acadêmico; e, na pior das hipóteses, trata-se da demonstração de uma técnica a ser oferecida a “clientes premium”, não apenas capazes de pagar pelo intenso processo laboral demandado pela impressão manual, como também porque desconsideram qualquer consequência ambiental de seus atos — e não é isso que caracteriza o “consumo premium”, ou “de luxo”?: o completo descaso pelas consequências do impulso de compra… (Hoje, há um discurso que tenta equalizar “consumo de luxo” com “consumo eco-consciente”… Louvável, mas é muito difícil fazer essa aproximação sem ceder a um novo tipo de consumo conspícuo, que, pela sua própria natureza, é contrário à consciência ecológica: não adianta comprar produtos eco-compatíveis mas com o mesmo tipo de impulso desmedido de antes. Pois, quase nada funciona ecologicamente na escala global do consumo de massa.)
O que me pega é uma estética que perpassa todo o vídeo (e seu repositório). Sutil e implícita em cada ato, composição e plano de câmera. Uma precisão pautada por uma certeza profunda do que se está fazendo. Como que tudo estivesse passado a limpo, movimentos treinados e controlados (obviamente ensaiados, e filmados, inúmeras vezes, até o final cut), composição 3D dos texto, os “nomes” das peças e componentes, syncados com os movimentos. Tudo muito conciso, preciso e pedagógico. Trata-se de uma postura poética e cultural que é tributária de uma das grandes conquistas da humanidade, da qual o mundo contemporâneo é profundamente dependente, e que demonstra que o ser humano consegue ser preciso e conciso, expressando uma racionalidade criativa muito consequente. E talvez me pegue tanto exatamente porque me identifico com essa procura.
Me parece que, tanto o tutorial, como público ao que ele se destina, são parte integral de uma “Europeidade”: um modo de pensar europeu, que surgiu e evolui influenciado pela tradição greco-romana, estabeleceu-se como uma potência global — dominando culturalmente, militarmente e economicamente todo o mundo — que tem em sua pauta coisas como a “sanha do crescimento ilimitado”. Esse mindset, que também se compõe como uma clara postura estética (o que podemos chamar do “rigor” do design ‘europeu’ — mais explicitamente ‘suíço’…), que envolve uma “certeza de projeto”, uma firmeza de proposta que faz inveja aos designers tupiniquins e gringos, e influencia muita gente no continente americano… Mas sempre soando como uma caixa de ressonância, mais do que um impulso que emerge de dentro, como nas escolas germânicas, suíças e até mesmo francesas.
Mas, que ‘certeza‘ é essa?
Não foi exatamente essa postura “firme” — a bem dizer, será que arrogante, impositiva, autoritária? — característica do Europeu que colocou a humanidade na posição em que está: ela tornou-se um peso, um obstáculo para o restante da vida na Terra? E, também é certo, as mazelas da violência contemporânea devem muito a essa atitude, a da certeza prerrogativa e peremptória, do colonizador que afirma: “EU SEI!”
Será que podemos continuar assim?
Certamente, as coisas não são tão simples assim. E é claro que boa parte do sucesso da humanidade enquanto espécie, decorrente da revolução científica, foi o que gerou a superpopulação contemporânea — da qual decorre o super-consumo e, por sua, vez o esgotamento dos recursos naturais e do ‘carrying capacity‘ do planeta. Será que não foi exatamente aí, no enebriamento do sucesso, que essa atitude em prol da certeza e da precisão (na qual está entranhada a postura ético-estética sobre a qual falo aqui) ganhou o peso que hoje tem?
Um tutorial, a princípio inocente e inofensivo, me parece uma expressão sutil e elegante de uma cultura que sofre ao ceder seu lugar no centro das atenções. E é claro que o europeu sabe ser arrogante E elegante. É só lembrar dos Medici na Florença renascentista, equilibrando as conflitantes sensações do refinado apreciador da sofisticada arte de um Michelangelo, ao se refrescar de uma campanha do empalamento de seus adversários. Mas, de que refinamento estamos falando? Me parece que é o refinamento de um cristal, de uma certeza absoluta e imovível de algo será feito de uma determinada maneira.
De vez em quando, eu me refiro a um “Sistemismo Europeu”: o que acho ser a característica mais profunda e recorrente da “europeidade”. O Sistema é o centro de toda e qualquer consideração. O Sistema é expressão de um pensamento “rigoroso”, “justo” e “preciso”. Me parece que o auge desse sistemismo se dá hoje, exatamente quando os seus limites se manifestam cada vez mais. O sistemismo se pauta pela totalização, com a intenção de colocar Tudo na descrição que carregamos do mundo, o que é obviamente impossível — caímos no reducionismo mutilador da ciência padrão.
O dito “pensamento sistêmico” é herança desse modo de pensar, mas já sofre muitas influências do pensamento oriental, aborígene e das novas culturas decorrentes da indústria global. O pensamento sistêmico oferece uma passagem desse sistemismo obsessivo, tão característico do europeu, para um pensamento holístico, Ecológico, que não poderia ter surgido antes, dadas as múltiplas influências das quais é tributário, muitas desenvolvidas apenas após as tremendas concussões que o colonialismo europeu aspergiu pelo mundo.
Não podemos abandonar o pensamento europeu, seu modo ‘conciso e preciso’ de expressão. Assim como o pós-modernismo só pode ser o que é por ser tributário do modernismo, o pensamento sistêmico, ou ‘ecológico’ (como prefiro), é também tributário desse pensamento industrial europeu.
Mas, por outro lado, como seria um design rigoroso, ligado a um campo complexo de impulsos, demandas e fluxos?
Será que ainda vamos esperar que a resposta a essa pergunta venha da Europa?
Ou de um modo de pensar exclusivamente, ou predominantemente, europeu?