Bom…

Já era tempo do meu discurso se ajustar para um campo mais expandido de conversas. Quem tem acompanhado o teor nas palestras que tenho proferido já está percebendo a mudança.

No mesmo dia em que estava com as pessoas que foram à última palestra, dia 5 de outubro, fico sabendo tarde da noite sobre a morte de Steve Jobs.

Já posso escutar alguns dizendo: “lá vem mais um chato falar sobre o ídolo pop da computação…!”. Pois é… Espero que não seja chato, e que possa contribuir um pouco.

Acompanho o desenrolar da Apple desde o início da década de 1980, ainda pré-adolescente, pretendente a físico, ou artista, ou agrônomo, designer, arquiteto, e sei lá quantas outras ocupações. Naquela época, achava Jobs um egomaníaco, arrogante e auto-referente; e que o verdadeiro gênio da dupla fundadora da Apple era Steven Wozniak, engenheiro brilhante, capaz de projetar um computador completo em uma única placa, com vídeo de imagem colorida, Assembler e Basic inclusos, etc., o Apple II. “Jobs era um ‘impostor’, um ‘cara-de-pau’, que tomava para si as criações de outros, em especial Woz, e ‘bancava de mega-empresário’!!!”…diria o pubescente Caio… Ai!

Lembro do lançamento do Lisa (1983) e do Macintosh (1984). Estranhando a interface gráfica do usuário (GUI), achei, a primeira vista, um pouco de malabarismo gratuito. Depois, veio a compreensão com uso em primeira mão, e o conhecimento da complexa e rica história do desenvolvimento das GUIs, desde sua origem com Engelbart, seu desenvolvimento por Alan Kay e outros, no Xerox PARC, e sua entrada na Apple, por insistência de Jef Raskin (de início, contra a vontade de Jobs… “Macintosh” era o tipo predileto de maçã de Raskin , que foi despedido por Jobs após uma série de disputas de poder… Estranha homenagem!).

Com a idade, vem (espera-se!) um pouco mais maturidade. E, com isso, em geral, manifesta-se a capacidade para pensar em níveis de abstração mais elevados. E, se na pré-adolescência, eu achava que o marco da criatividade era o artefato palpável em si (o “computador”), na minha vida adulta passei a reconhecer a capacidade de organizar um empreendimento e levar um produto bem-sucedido ao mercado como, também, um ato que pode ser profundamente criativo.

Nesse contexto, o modo como Steve Jobs “gerenciou” a Apple pode ser visto como bem mais do que apenas “gerenciar”: há muita criatividade envolvida no processo.

Desde a década de 1990, o universo da Arte discute a figura do “curador”: seria ele apenas um gestor, que organiza a exposição, sabendo selecionar o que pode representar melhor ou de maneira mais adequada a proposta inicial da exposição em questão? Ou ele é mais que isso? Seria ele uma força criativa que filtra a realidade e a criatividade alheias para fazer emergir uma “meta-obra”: a exposição curada por ele?

Estaria o curador em um nível de abstração mais elevado do que o artista que cria a peça individual? Assim como o CEO de uma empresa de tecnologia poderia desempenhar o mesmo papel?

Acho que é isso mesmo: a posição de um Steve Jobs pode ser ocupada por ele, ou por um cara “feijão-com-arroz”, como Michael Spindler, que quase levou a empresa à falência. Spindler é famoso por ser um cara “no bullshit”, “sério”, “competente”, “objetivo”, “workaholic”… Só adjetivos “parrudos” e “sérios”… Talvez por isso mesmo, ele não soube o que fazer com uma empresa como a Apple, pautada pela criatividade, cheia de funcionários como Bill Atkinson que, depois de ser a “alma criativa” da equipe de desenvolvimento do primeiro Macintosh, e inventar o primeiro sistema funcional de hipertexto, o “Hypercard”, e insistir que fosse distribuído com todos os Macintoshes, de graça, largou a profissão de programador e virou fotógrafo. Como um Spindler “entende” um Atkinson? Acho que não entende…

Só um parênteses: (Não fosse o Hypercard, provavelmente não teríamos a World Wide Web. Tim Berners-Lee cita explicitamente o Hypercard como uma das principais influências e inspirações para a invenção da Web. Ah!… Outra coisa: Berners-Lee programou a Web em um NeXT Cube rodando NeXTSTEP, máquina e sistema operacional da empresa que Jobs fundou depois de ser deposto da direção da Apple…) Pronto, fim dos parênteses.

Richard Stallman, fundador do movimento Software Livre, possivelmente a maior força por liberdade no fim de, e início, de milênio — responsável, no fim das contas, por organizar o sistema operacional mais sofisticado e funcional em uso, o GNU/Linux (um verdadeiro esforço colaborativo e aberto) — declarou que está feliz que Jobs “se foi”, pois foi o “pioneiro da computação em forma de prisão divertida” (tradução livre). Mas ele insiste que não está feliz com a morte de Jobs…

Compreendo e concordo, parcialmente, com o argumento de Stallman: um computador é uma das ferramentas mais poderosas para “expandir a mente humana”, mas o tremendo poder das máquinas contemporâneas está dedicado, na maior parte do tempo, para ver fotos no facebook e “jogar fazendinha”… Stallman, assim como outros pioneiros da educação por meio da computação, como Alan Kay e Seymour Papert, acreditam que a popularização do computador deveria ter ocorrido pela disseminação da “capacidade de programar”, de “compreender a máquina”, de conhecer suas entranhas para criar novas realidades a partir desse conhecimento.

A banalização do computador como um ambiente interativo que tem “suas entranhas” lacradas para o usuário leigo, como é o caso do MacOS até o MacOSX, é vista por pessoas como Stallman, Kay e Papert não apenas como uma banalização tola, mas como algo perigoso, pois coloca o usuário em uma posição passiva, incapaz de compreender o ambiente em que está imerso a maior parte do dia (atualmente…) e, no fim das contas, um refém de uma lógica que está muito além de seu alcance intelectual, exatamente porque nunca perfura a película que o separa da operação lógica do computador (e não porque essa lógica é, efetivamente, “inalcançável”… insistiriam Stallman, Kay e Papert, “tudo é uma questão de aprendizado…” — concordo com essa visão!).

Boa parte dessa visão está inclusa no projeto e estrutura de funcionamento do OLPC, e no sistema operacional Sugar.

Neal Stenphenson, autor de “ficção especulativa”, escreveu um texto crítico/jocoso a respeito de sistemas operacionais: “In the beggining…. Was the command line”, em que o argumento é o mesmo de Stallman: Stephenson compara os diversos sistemas operacionais disponíveis na época (1999), Windows, MacOS, BeOs e o Linux, e diz que tanto o Windows como o MacOs estão para um OS “de verdade” como a Disneyland está para uma cidade real…

É uma comparação divertida. Mas, acho que, como Stallman, ele também está errado.

Dizer que os OSs “fáceis de usar”, mas “difíceis de configurar e programar” (sem falar em que são uma porcaria em termos estruturais, como era o MacOS em 1999), é perder de vista que foi essa “facilidade superficial e limitada” o caminho para que o computador deixasse de ser apenas uma ferramenta para especialistas e se tornasse um item viável no contexto do consumo de massa.

Além disso, o iOS (iPad, iPhone e iPod) é um novo tipo de interação tão diferente do que se imagina ser “computação séria”, que caras como Stallman e Stephenson sequer gastariam mais do que 10 segundos pensando sobre eles…

Isso não quer dizer que a única maneira de fazer um sistema operacional (para desktop ou tablets) seja da maneira “lacrada” pela qual a Apple faz. Um belo exemplo é o já citado Sugar, sistema operacional nos OLPCs. Baseado em Linux, e usa uma abordagem de interação completamente diferente dos GUIs tradicionais, e abre as entranhas do computador para o usurário.

Mas, que Jobs foi apenas um cara que fez “imageneering” (como os caras que inventam os rides da Disney) é um pouco demais.

Foi o Jobs e a Apple que contribuíram decisivamente para que o PC se tornasse um item de consumo de massa, e fizeram isso 3 vezes, em 3 abordagens diferentes.
Com o Apple II, apropriando-se da parafernália e práticas dos amadores de eletrônica digital (1977).
Com o Macintosh, apropriando-se do know-how proposto por Engelbart e desenvolvido por Alan Kay na Xerox (1984).
Com o iOS, INVENTANDO uma interface touch viável (2007). (Os experimentos de Han e da Microsoft com telas touch eram tão iniciais, que não se converteram em “coisas práticas”).

Ou seja, a única vez que a Apple inventou algo profundamente novo ao nível de um sistema operacional foi agora com as interfaces touch…
E, obviamente, não foi Jobs que fez isso sozinho… Ele foi “meramente” um organizador da criatividade de centenas de pessoas, validando e curando a inovação alheia, coisa que um Bill Gates tem uma tremenda dificuldade de fazer…

Há um texto de John Dvorak, de meados da década de 1990, sobre o papel da Apple, e de Jobs, para a evolução da computação pessoal. Dvorak, essencialmente, diz que, não fosse a Apple, a gente ainda estaria usando (notem, meados da década de 1990) linha de comando, uns 124kb de RAM, discos rígidos seriam novidade, e o “killer app” seria pac-man. Foi nos Apple II que a planilha e word processing se tornaram viáveis, foi no Mac que o uso de discos rígidos e a exigência por um sistema operacional parrudo, dada a complexidade dos aplicativos gráficos, se tornou comum, e as apostas que a Apple fez em abandonar padrões antigos em funçáo de novos é impressionante. E, acho que, se dependesse da Microsoft, a gente ainda estaria usando linha de comando e diskettes de 8 polegadas para TUDO.

Eu não sou ingênuo quanto ao “menino sírio”: ao que tudo indica, ele tinha bastante de um louco tirano dentro da Apple, com rompantes marcados pelo seu “campo de distorção de realidade”. Mas o papel dele na cultura contemporânea vai muito além do “carcereiro divertido”…

Me parece que uma característica sua é a mesma que observa-se em outras figuras de destaque no contexto norte-americano do século XX (tão marcado pela excitação da mídia e pela constante construção, e reconstrução, de sucessivas realidades). Duas outras figuras que merecem nota são Walt Disney e Buckminster Fuller. Disney foi muitíssimo criticado por “não saber desenhar tão bem” quanto seus animadores (em especial durante o início de sua produtora, quando foi comparado, desfavoravelmente, a Ub Iwerks, um de seus principais e mais talentosos animadores), e que foi “apenas” um editor de conteúdo alheio. Fuller foi idolatrado por hordas de arquitetos e engenheiros (dentre eles, este que aqui escreve), para ser vilipendiado pelos mesmos quando “descobriam” que tudo sobre o que falava era de conhecimento público, ele “apenas” foi capaz de organizar didaticamente as ideias alheias em um todo coerente, e propor modos inovadores de ação crítica sobre o ambiente construído.

Aí, voltamos à primeira das principais questões aqui lançadas: qual foi, efetivamente a contribuição de Steve Jobs para a cultura contemporânea, e futura?

Me parece que, assim como Disney e Fuller, Jobs foi um pessoa capaz de reconhecer e validar a criatividade alheia. Isso pode soar como algo simples e prosaico. Mas, na verdade, exige muito desprendimento e sensibilidade, ao mesmo tempo que, para que o empreendimento “decole”, o “líder” do processo tem que valorizar e recompensar o trabalho alheio. Em comparação, estas 3 figuras tiveram graus diferentes de sucesso nessa empreitada: Fuller trabalhou, na maior parte das vezes, sozinho, e Disney foi um líder bastante controverso, mas idolatrado… Já Jobs soube “arrancar” os melhores resultados de seus funcionários para a criação de um todo coerente. E isso no contexto corporativo de início de século XXI, notavelmente burocratizado, simplório e moroso.

Ainda por cima, a Apple está desempenhando um papel complexo e dúbio em um contexto de difícil interpretação: Por um lado, a estrutura comercial da empresa exige que todos seus produtos, e produtos associados, sejam controlados estritamente, em um sistema de comercialização centralizado, pautado pela lógica do “broadcast”, método tradicional da indústria cultural. Por outro lado, a extrema riqueza e variedade de tipos de informação que estão disponíveis no sistema Internet/Web é produto de um processo capitaneado pela Apple: a empresa representa, acolhe e desenvolve as premissas da “ampliação do intelecto humano”, projeto iniciado por instituições de pesquisa acadêmica no início da década de 1960, e que contou com a contribuição de um monte de gente, desde Vannevar Bush, até Jeff Han, passando por Alan Kay, Papert, Engelbart, Atkinson, Berners-Lee e tantos outros — um verdadeiro esforço colaborativo de grande porte, do qual a empresa é uma das peças mais importantes.

Em outras palavras: quanto os produtos da Apple contribuíram para autonomia de pensamento humano, e quanto a lógica comercial da empresa nos segura no mesmo campo de pensamento embotado contra o qual o primeiro Mac foi promovido (propaganda de 1984)? Já discuti essa questão, e não sei qual é a resposta para ela… Mas, certamente, o papel de Jobs e da Apple são cruciais para se compreender o mundo contemporâneo, e o que está por vir logo mais.

A segunda questão que me motiva a escrever aqui é que Jobs procurou, talvez de um modo um tanto atabalhoado, por auto-conhecimento. E creio que esse foi um fator muito importante para sua contribuição à cultura tecnológica contemporânea e futura.

Jobs teve um um comportamento “fora da caixa” por toda a vida, desde viagens à Índia a retiros em ashrams, até a capacidade de não ceder ao “feijão-com-arroz” do cotidiano de uma corporação. E, não a toa, a Apple adotou o slogan “Think Different”.

Na época do lançamento do Macintosh, Jobs insistia que o dispositivo seria uma ferramenta de libertação, parte de sua visão de mundo anti-totalitária: a propaganda de lançamento do Mac mostrava um horda de zumbis, aludindo aos usuários da computação pessoal dominada pelo paradigma “linha de comando”, e pela lógica corporativa de empresas como a IBM. A mitologia que cerca essa fase da empresa diz que todas essas coisas foram decididas pessoalmente pelo próprio Jobs.

No livro “What the Dormouse Said: How the 60s Counterculture Shaped the Personal Computer”, o autor John Markoff traça a relação entre a contracultura da década de 1960 e a revolução da computação pessoal. Markoff vai além de explicitar as notórias conexões entre o mundo acadêmico da computação e os ideais políticos e culturais libertários daquele momento (talvez melhor exemplificado pelo ativismo político-tecnológico de Ted Nelson). O livro parece demonstrar que a importância da procura por auto-conhecimento teve um papel muito mais importante para a popularização da computação do que os investimentos corporativos e os maciços lucros decorrentes.

E, notem, longe desse post ser um “elogio rasgado” a um “gênio incondicional”, minha intenção é a de frisar a importância do auto-conhecimento para o desenvolvimento da criatividade…

(Bom, um agradecimento se faz necessário: esse post começou a partir de uma troca de emails com Raphael, Jayme e Tiago… LOL!!)

Steve Jobs, criatividade/inovação e auto-conhecimento…

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