Camadas da Cidade Distribuída
Desenvolvo o conceito da Cidade Distribuída há muitos anos. E estou fazendo o meu pós-doutorado para formalizar seus conceitos fundamentais.

Recentemente, com o estímulo do Oswaldo Oliveira, resolvi abrir o projeto para a colaboração da comunidade como um todo. Confiando em uma lógica colaborativa, a proposta é que se faça emergir percepções, ações, jurisdição, organizações e serviços para uma cidade que se compõe como uma rede distribuída. Vejam o grupo no Facebook.

A cidade é uma rede distribuída por sua própria natureza territorial. Mas ela não opera apenas desse modo: há uma série de outras redes — centralizadas, descentralizadas, e outras — sobrepostas a ela. Christopher Alexander nos diz há anos que a “cidade não é uma árvore”, e a descreve como uma “semi-lattice”, em que estruturas hierárquicas (“árvores”) e não-hierárquicas (“semi-lattices”, ou “rizomas”, no léxico de Deleuze e Guattari) se sobrepõe no tecido urbano. Jane Jacobs se apropria do conceito dos “sistemas complexos organizados”, proposto por Weaver, e diz que a cidade é mais interessante, mais saudável e mais legítima quando abre-se para os processos emergentes das comunidades.

Há um campo de ação complexo na cidade, com muitos níveis e camadas de organização, e não se pode mudá-la de uma hora para outra. Ou pode-se?

Um aspecto dessa proposta de estender-se a Cidade Distribuída para uma comunidade mais ampla é que a criação de alternativas para a vida urbana atual pode ser um processo extremamente veloz. Já faz alguns anos que, ensejado pelas minhas pesquisas com a Cidade Distribuída, venho falando que Designers de Interação estão crescentemente fazendo urbanismo. Mas um novo tipo de urbanismo, que não se faz pelo planejamento do território, ou da paisagem, ou pelo projeto de infra-estrutura e malha viária, ou sequer pelo planejamento e produção de políticas públicas. Trata-se de um urbanismo que compreende-se como a composição da cidade enquanto um espaço de interação social, e cuja infra-estrutura construída é um aspecto para promover ou viabilizar a interação social.

Neste sentido, a idéia tradicional de cidade é questionada: a cidade enquanto concentração populacional no território seria apenas uma das maneiras (e a mais tradicional) para promover-se interação social, a vizinhança teria sido a ferramenta mais primitiva para a socialização. À vizinhança, se sobrepôs a instituição, a organização social mediada pela abstração da sociedade em super-estruturas político-organizacionais. A instituição teria sido o meta-ambiente para que a sociedade se descolasse do território, promovendo interação social suscitada não pela proximidade geográfica mas principalmente pelos interesses em comum (escolas, universidades, hospitais, etc.) e/ou participação em um complexo sócio-político (militares, governo, Estado, etc.). Em tempos recentes, sobreposta à vizinhança e à instituição, emerge a telecomunicação. Em especial a telecomunicação popularizada pela telefonia móvel, e pela computação móvel (smartphones e tablets). A telecomunicação promove a interação social sem a mediação forte da instituição e sem a necessidade da proximidade geográfica.

Algumas mudanças ocorrem no meio urbano em decorrência dessa sucessão de modos de interação social: de organizações sediadas na relação corpórea imediata, para organizações mediadas pelo código e pelo estatuto, e para organizações mediadas pelo código binário e pela eletrônica. De organizações geo-localizadas, para organizações territoriais e militares, para organizações pós-territoriais e trans-localizadas.

Uma consequência da sucessão dos modos interativos é uma transmutação do território da cidade. Por “trans-territorial”, não entendo “sem território”, mas que o território deixa de ser o anteparo por meio do qual a sociedade se organiza enquanto entidade coerente. O território continua sendo, necessariamente (assim como o corpo), um aspecto fundamental da existência cultural — mas ele passa a se produzir de modo distribuído e altamente fragmentado, permitindo uma série de práticas que emergem na contemporaneidade. Em especial, uma situação que torna-se cada vez mais comum, e ainda pouco estudada: a sobreposição da subjetividade urbana e a baixa densidade populacional do campo, do rural. O fenômeno das “eco-vilas” que, creio, é mais adequadamente compreendido por meio dessa sobreposição do que pela simples, mas creio enganosa, atualização das práticas estritamente rurais em prol da sustentabilidade ambiental. Talvez outro fenômeno decorrente da trans-localização pós-territorial seja a proliferação de condomínios semi-rurais, e ainda o subúrbio, na procura de uma ambiência alheia à concentração populacional no território. Me parece que trata-se do mesmo campo semântico que se manifesta de numerosas maneiras no tecido urbano pós-industrial, altamente modulado pela mobilidade motorizada e pela telecomunicação (mesmo que a primitiva dos correios e telégrafos, e que foi continuamente remodulada pela aceleração e barateamento dos meios de telecomunicação eletrônica e digital).

Neste sentido, a procura por um contato mais direto com a natureza extra-humana (o bucólico — fictício ou não — do campo entendido como a modalidade mais comum dessa procura) poderia ter vazão sem que a densidade de interação social deixasse de estar presente. Tenho dito que um protótipo de ocupação radicalmente nova do território seria a sobreposição de alguns princípios organizacionais: (1) arquitetura móvel; (2) telecomunicação de banda larga confiável; (3) vida social local rica, mas de baixa intensidade; (4) variabilidade de ocupação e população; (5) educação aberta, comunitária e baseada em redes de aprendizagem. A esses, se sobreporiam tantos outros aspectos da organização social, desde a saúde preventiva até a agricultura orgânica, passando pela atualização da jurisdição.

O desafio, nesse momento, é imaginar e implementar serviços para sustentar a vida individual e coletiva em contextos de fato distribuídos…

Há muitos aspectos a serem explorados na Cidade Distribuída. Dois me chamam a atenção, e estão intimamente relacionados: política e estatuto.

Há, atualmente, uma ideologia um tanto mal-formada que postula que os Sistemas Distribuídos são a solução de todos os problemas sócio-políticos. É uma visão ingênua e que pode ser até mesmo perigosa. Por que digo isso? É que sistemas distribuídos podem ser intrisecamente muito perigosos. O linchamento pode ser o mais gráfico exemplo de um sistema emergente, distribuído e auto-organizado cujo objeto e consequência não podem ser vistos, nem mesmo remotamente, como bons. Por outro lado, o aspecto menos estudado e discutido dos sistemas distribuídos — sua centralização abstrata e absoluta — que, para operar, dependem de um codex absolutamente centralizado (UM código, UM protocolo, UMA lei, UM princípio, etc.), encerra a potencialidade de um “totalitarismo simplificado”. Como já disse em outras oportunidades: a forma mais compacta de governo é o código; e um sistema distribuído depende de um código que media todas as relações do sistema. Por esse motivo, creio que é cada vez mais importante reconhecer a diferenciação entre sistemas distribuídos “formais” e “para-formais”. Os “formais” são aqueles que dependem claramente de um codex sobrecodificado (no léxico de Deleuze), os “para-formais” seriam aqueles que contam com mitologias, elocuções, práticas, narrativas e ações que não podem ser codificadas de modo formal, mas que ainda assim contam com uma centralidade móvel e complexa, mutante e que recusa a redução do estatuto.

Isso me leva a uma das questões mais amplas e mais profundas relacionadas à Cidade Distribuída (e a tantas outras expressões da minha pesquisa) a da precariedade do conhecimento: nenhum modelo é definitivo, não importa o quão amplo e/ou profundo ele possa parecer. Há sempre um excedente semântico que deve ser tratado ou pelo menos reconhecido. Meu empenho em desenvolver o Metadesign e seu diálogo com a Arquitetura Livre foi meu maior esforço quanto a isso, pelo menos do ponto de vista epistemológico. E estou certo que a Cidade Distribuída será um grande desafio para que a sociedade seja capaz de reconhecer a precariedade de todo o conhecimento…

Uma abordagem para lidar com essa questão pode ser a sobreposição entre sistemas centralizados, descentralizados e distribuídos, assim como a oscilação entre eles. Trata-se de uma abordagem que reconhece a precariedade de qualquer modelo, e que sabe que cada uma dessas topologias pode contribuir para a legitimidade de um complexo processo sócio-político.

Eu diria que um modo de resumir minha postura frente aos sistemas distribuídos seria a de acioná-los como entidades em sobreposição, sempre em diálogo com outros sistemas. Pierre Lévy já nos vinha alertando quanto ao equívoco de compreender a emergência do Virtual no mundo contemporâneo como uma “substituição”, e insistia em dizer que é oportuno considerar essa emergência como uma “sobreposição”. E se, de fato, a proposta da Cidade Distribuída é a de incluir uma vastidão de modelos, esses serão eventualmente centralizados e/ou distribuídos.

(A ilustração acima — que é a capa do grupo no Facebook — foi uma construção colaborativa entre Amanda Vargas, Oswaldo Oliveira e eu. E encerra uma visão social, organizacional e espiritual para a Cidade Distribuída. Leiam mais no grupo do Facebook.)

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